Por Ivan Castrese
O Superior Tribunal de Justiça, sob o rito dos recursos repetitivos, fixou a tese do Tema 1.203, colocando fim a uma controvérsia antiga: saber se a apresentação de fiança bancária ou de seguro-garantia judicial é suficiente para suspender a exigibilidade de créditos não tributários. Com a definição, os processos sobrestados voltaram a tramitar e os tribunais passaram a observar orientação uniforme, com efeito vinculante na forma do art. 927, III, do CPC.
A divergência residia na extensão, para os créditos não tributários (multas administrativas, sanções ambientais, indenizações devidas ao poder público etc.), do regime de suspensão da exigibilidade tradicionalmente associado aos créditos tributários (depósito integral — art. 151 do CTN, Súmula 112/STJ). Algumas decisões recusavam a equiparação, invocando a especialidade da Lei de Execução Fiscal (LEF) e a natureza excepcional do depósito em dinheiro. O precedente qualificado afasta expressamente a aplicação da Súmula 112/STJ e da tese do Tema 378 ao âmbito não tributário, reposicionando o debate nos marcos do CPC/2015.
A solução construída pela Primeira Seção parte do desenho normativo do processo executivo comum e da própria LEF. De um lado, o CPC/2015: (i) equipara a dinheiro, “para fins de substituição da penhora”, a fiança bancária e o seguro-garantia, desde que no valor do débito acrescido de 30% (art. 835, § 2º); e (ii) admite a substituição da penhora por essas garantias (art. 848, parágrafo único). De outro lado, reconhece-se a evolução legislativa e jurisprudencial que, desde a Lei 11.382/2006 e, mais tarde, a Lei 13.043/2014, consolidou o seguro-garantia judicial como caução idônea no contencioso executivo.
A partir desse conjunto, o STJ concluiu que as garantias produzem efeitos jurídicos equivalentes ao depósito em dinheiro para o fim específico de assegurar o juízo e, com isso, suspender a exigibilidade do crédito não tributário, superando resistências antes justificadas pela leitura estrita da LEF.
Em síntese, firmou-se o entendimento de que o oferecimento de fiança bancária ou seguro-garantia — no valor atualizado do débito com acréscimo de 30% — suspende a exigibilidade do crédito não tributário. O credor não pode rejeitar a caução arbitrariamente; a recusa somente se legitima mediante demonstração concreta de insuficiência, vício formal ou inidoneidade da garantia.
A tese decorre de julgamento unânime em repetitivo (paradigmas REsp 2.007.865/SP, 2.037.787/RJ e 2.050.751/RJ), com publicação do acórdão em junho de 2025 e divulgação institucional subsequente, com os seguintes pontos de destaque:
(i) Preservação de liquidez. A equiparação funcional das garantias ao depósito em dinheiro permite discutir judicialmente o débito sem imobilizar caixa, aliviando o capital de giro de empresas sujeitas a créditos sancionatórios ou contratuais não tributários.
(ii) Redução de litigiosidade defensiva. A uniformização pelo regime de precedentes repetitivos elimina debates periféricos sobre a idoneidade da garantia e concentra a controvérsia no mérito do crédito, com impacto positivo na duração razoável do processo.
(iii) Segurança jurídica e previsibilidade. A orientação vinculante dá coordenadas objetivas (valor, suficiência técnica e regularidade formal) para aceitação da garantia, tanto por credores quanto por magistrados, com efeitos imediatos sobre processos sobrestados.
(iv) Efeitos materiais da suspensão. A suspensão da exigibilidade afasta, enquanto vigente, atos com finalidade executiva ou constritiva vinculados ao crédito não tributário e viabiliza a continuidade da discussão judicial sem prejuízo à emissão de certidões — nos termos explicitados pela comunicação institucional do STJ.
A administração ou o ente credor pode impugnar a caução, mas deve fazê-lo fundamentadamente, demonstrando (a) insuficiência econômica (valor inferior ao débito atualizado + 30%; ausência de cláusula de atualização; franquias indevidas), (b) vícios formais (apólice sem assinatura qualificada; ausência de endosso; não indicação do processo), ou (c) inidoneidade subjetiva do garantidor (instituição não autorizada; seguradora sem habilitação/regulação). A recusa genérica é inadmissível. Precedente da própria Corte ressalta que a substituição de penhora por seguro-garantia pode ser negada se o credor trouxer razões objetivas — critério que, por simetria, ilumina o juízo sobre a idoneidade na oferta inicial.
O acórdão registra a consolidação, na Primeira e na Segunda Seção, da eficácia da fiança bancária e do seguro-garantia como instrumentos menos onerosos ao devedor, sem prejuízo da tutela do crédito — trajetória que passa, entre outros, pelo EREsp 1.381.254. A tese do Tema 1.203, portanto, não inaugura um regime ex novo, mas sistematiza e vincula uma evolução jurisprudencial já perceptível desde o CPC/2015.
- Memória de cálculo com atualização até a data da oferta e projeção dos 30%;
- Documento de garantia com cláusulas usuais de executividade (renúncia a benefício de ordem, vencimento antecipado em caso de inadimplemento, vigência até a extinção da obrigação, manutenção do limite exposto);
- Comprovação de idoneidade do garantidor (autorização do Bacen/Susep, rating, regularidade fiscal);
- Indicação do feito e do credor, com autorização expressa para liquidação imediata por ordem judicial;
- Compromisso de renovação automática ou substituição com antecedência mínima, evitando perecimento da cobertura.
Essas cautelas reduzem o espaço de controvérsia sobre suficiência e adequação da caução, alinhando-se ao standard probatório exigido para afastar recusas arbitrárias.
O Tema 1.203 traduz uma escolha institucional clara: prestigiar garantias financeiras modernas (fiança bancária e seguro-garantia) como meios idôneos de assegurar o juízo e suspender a exigibilidade de créditos não tributários, desde que observado o acréscimo de 30% e atendidos requisitos de idoneidade e regularidade formal. A diretriz melhora a alocação de riscos no processo executivo, preserva liquidez de agentes econômicos sem fragilizar a tutela do crédito público e harmoniza a aplicação do CPC com a LEF, superando leituras que confinavam a suspensão ao depósito em espécie. Ao uniformizar o tema sob a técnica dos repetitivos, o STJ entrega segurança jurídica e previsibilidade a um contencioso expressivo, com reflexos práticos imediatos para credores e devedores.